DEDICAÇÃO, SATISFAÇÃO E RESPEITO

HORA E A VEZ DO GOVERNO

Pois bem, no Brasil de 2019, muitos cidadãos não têm a menor dúvida de que a missão do governo é atrapalhar a vida deles. Ainda mais com a sucessão de confusões dos últimos meses, essa impressão está reforçada. A gestão do presidente Jair Bolsonaro, que começou cercada de grandes expectativas, em pouco tempo enveredou por um caminho repleto de crises, deflagradas em boa parte pelo próprio governo, e por ora não se mostrou capaz de colocar em prática uma agenda para tirar o Brasil do atoleiro e recolocá-lo na trilha do desenvolvimento.

Globalmente, a democracia representativa se encontra em um período de baixa, como evidenciam o governo populista de Donald Trump nos Estados Unidos, o avanço de políticos de extrema direita na Europa e o encanto gerado pelo modelo chinês de capitalismo de Estado. Mas há que se diferenciar o que é governo do que é Estado. Ao mesmo tempo que a política anda turvada em muitos lugares, surgem novas concepções da relação do Estado com o cidadão. A transformação vem sendo propiciada por novas tecnologias digitais, como big data, blockchain e inteligência artificial. A revolução digital começa a dar origem a um novo tipo de gestão pública — o governo 4.0 —, que promete melhorar a qualidade do serviço público, reduzir os custos da máquina estatal, ampliar a transparência e, de quebra, fortalecer a democracia.

O fenômeno que está provocando mudanças profundas em alguns governos ganhou um nome: digitalização. O termo passou a fazer parte do vocabulário de gestores públicos em todo o mundo nos últimos anos e virou tábua de salvação para uma administração inchada, ineficiente e cara. Estimativas da consultoria McKinsey apontam que a adoção de tecnologias para a digitalização dos governos representa globalmente uma oportunidade de economia de 1 trilhão de dólares por ano. Outro estudo, da consultoria Accenture, calcula que 1% de avanço na digitalização do setor público poderia gerar um acréscimo de 0,5% no produto interno bruto dos países e de quase 2% na receita de comércio exterior.

Mas, afinal, que fenômeno é esse que promete revolucionar o serviço público? Antes de tudo, é bom que fique claro que não se trata de informatização — este, sim, um processo iniciado pelo setor público em vários países. O primeiro computador comercial do mundo foi instalado no escritório de estatísticas do governo americano em 1951. No Brasil, o estado de São Paulo adquiriu a primeira máquina desse tipo para calcular o consumo de água na capital paulista em 1957. Em ambos os casos, eram equipamentos capazes de armazenar dados e fazer as quatro operações básicas da matemática. Ao longo dos últimos 30 anos, as repartições públicas foram tomadas por computadores cada vez mais velozes, mas a natureza do trabalho, essencialmente, não mudou.

Foi só nos anos 2000, com a expansão da computação em nuvem, que uma nova rota tecnológica emergiu para os governos. “A digitalização do setor público tornou-se viável porque houve uma expansão acentuada da capacidade e uma redução brutal do custo de tecnologias”, diz Miguel Porrúa, diretor de governo eletrônico e cibersegurança do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

A tecnologia é importante aliada da gestão pública para lidar com crescentes desafios. Os déficits fiscais estão aumentando em países ricos e emergentes em larga medida pela pressão demográfica, que vai sobrecarregar os serviços dos governos num futuro que se avizinha. A população com 60 anos de idade ou mais aumenta hoje em ritmo mais acelerado do que a de jovens. Atualmente, há quase 1 bilhão de idosos no mundo — número que deverá dobrar até 2050 e mais do que triplicar até 2100. Esse é o grupo etário que demanda mais serviços de saúde e de assistência social. Por isso, a digitalização dos governos apresenta-se como uma enorme oportunidade. “Não há alternativa. Com a competição entre os países, quem não tiver um governo mais ágil e eficiente ficará para trás”, diz Arnauld Bertrand, líder global de governos da consultoria EY.

A revolução no setor público está apenas no início, mas já há alguns países no pelotão de frente. Para entender as mudanças, a reportagem de EXAME visitou dois deles que estão na fronteira da digitalização: a Estônia e a Dinamarca. Enquanto o primeiro, uma ex-colônia soviética, embarcou na transformação digital para sair do mais completo atraso, o segundo já era um dos líderes globais em qualidade de serviços públicos e agora ocupa a primeira posição no ranking das Nações Unidas que avalia 193 países conforme o estágio de implantação do governo eletrônico. Ambos os países são procurados por gestores do mundo inteiro interessados em aprender com suas experiências em digitalização (só no ano passado 8.000 pessoas visitaram com esse objetivo Talim, capital da Estônia, uma espécie de show-room dos serviços digitais). Em comum, funcionários do governo e especialistas dos dois países repetem de diferentes maneiras a mesma ideia: a tecnologia é apenas uma ferramenta, o que importa é a experiência do cidadão. Ninguém costuma sentir saudade de pegar fila em repartições públicas, desde que os cliques facilitem a vida do usuário. É o caso da recepcionista Ann Brix, de 50 anos, que mora em Copenhague, capital da Dinamarca. Segundo ela, pisar em uma repartição para resolver um problema por lá é uma raridade. A última vez que Ann teve de fazer isso foi quando precisou renovar com urgência o passaporte para uma viagem de última hora — o início do processo, contudo, foi pela internet. Até mesmo sua contratação para o atual emprego ocorreu a jato. O hotel em que trabalha a chamou para a vaga em uma sexta-feira à tarde. Na segunda-feira de manhã, seu primeiro dia na função, tudo estava legalizado no sistema do governo. “Não existe muita burocracia por aqui. A empresa e eu assinamos um contrato e pronto”, afirma Ann.

Os dinamarqueses iniciaram a digitalização dos serviços públicos em 2001. O primeiro passo foi a criação do NemID, uma espécie de RG digital para todos os cidadãos acima de 15 anos. Com um único login e senha, uma pessoa pode acessar serviços públicos e realizar transações bancárias pela internet. Em seguida, foi criada uma caixa-postal eletrônica, por meio da qual os governos nacional, regionais e municipais passaram a enviar suas notificações aos cidadãos. Paralelamente, o acesso a um cardápio de 100 serviços públicos mais utilizados — como matricular o filho numa escola e entrar com o pedido de aposentadoria — passou a ser feito apenas pela internet. Depois, o governo criou um portal que hoje oferece 2.000 tipos de serviço público por autoatendimento — a pessoa preenche o formulário pela internet e resolve tudo sem precisar ir até uma repartição pública.

“Os dinamarqueses usam bastante a internet e estão acostumados a resolver rapidamente uma série de assuntos em seu relacionamento com as empresas por meios digitais”, diz Adam Lebech, vice-diretor da Agência pela Digitalização, órgão do Ministério das Finanças responsável pela implantação da tecnologia digital no setor público. “É natural, portanto, que eles esperem dos serviços públicos o mesmo grau de eficiência que encontram no setor privado.” O uso da plataforma digital traz uma economia de 1 bilhão de coroas dinamarquesas (580 milhões de reais) por ano em despesas postais, impressão de formulários e horas de trabalho dos servidores públicos. Parece pouco, mas estamos falando de um país de 5,7 milhões de habitantes. Seria como se o Brasil — com uma população 37 vezes maior — obtivesse uma economia anual de mais de 20 bilhões de reais com a digitalização.

É compreensível que a rica Dinamarca, cujo PIB per capita é um dos maiores do mundo, esteja investindo fortemente no governo eletrônico, ainda mais porque o envelhecimento da população tem reduzido a oferta de mão de obra. Mas como explicar que a Estônia, um país que reconquistou a independência em 1991, quando metade da população nem sequer tinha telefone fixo, conseguiu dar um salto tecnológico mesmo com total falta de recursos?

O pequeno país báltico é uma prova de que a digitalização do governo não depende do tamanho do orçamento. Depois de 50 anos de anexação à então União Soviética, a Estônia cortou todos os laços com Moscou e, de um dia para o outro, ficou sem uma estrutura central de governo e de abastecimento — 98% das relações comerciais eram com os soviéticos. O orçamento público no primeiro ano após a independência era de 113 milhões de euros — menos de 100 euros por cidadão por ano.

A saída para o novo governo estoniano foi iniciar rapidamente uma transição para uma economia de mercado, com reforma monetária, privatizações, abertura do comércio e uma lei que proibia déficits orçamentários. A reboque, passou-se a discutir a melhor forma de organizar um governo recém-nascido, que deveria ser o oposto da estrutura burocrática da era soviética. “Lembro que meu pai estava construindo nossa casa quando eu era criança e ele tinha de arranjar seis autorizações para comprar uma simples privada”, diz Kaarel Kuddu, hoje com 36 anos e diretor de produto da TransferWise, startup que facilita transações financeiras globalmente, criada em 2010 em Londres por dois empreendedores da Estônia e avaliada em 4 bilhões de dólares. “Hoje, toda a interação de nossa empresa com o governo estoniano é feita pela internet.”

Na Estônia, 99% dos serviços públicos são oferecidos digitalmente — apenas casar-se, divorciar-se e registrar um imóvel são feitos pessoalmente, por enquanto. Além disso, 99% das transações bancárias são realizadas online e 98% dos negócios são abertos pela internet — o processo dura apenas 18 minutos, fazendo com que a Estônia seja classificada pela OCDE, o clube dos países ricos, como uma das nações mais avançadas na transformação digital. Uma das iniciativas fundamentais para alcançar esse estágio foi a criação, em 2001, de uma plataforma digital chamada X-Road, que hoje integra mais de 1.000 instituições públicas e privadas na troca de dados dos cidadãos. Estima-se que a digitalização no país resulte em uma economia anual de 2% do PIB e já tenha poupado mais de 840 anos de tempo de trabalho de cidadãos, empresas e servidores.

A era dos algoritmos

No mundo todo, a agenda da digitalização de governos ganhou impulso nos últimos anos com o avanço da inteligência artificial. A tecnologia que tenta imitar a capacidade humana de resolver problemas complexos é vista como uma ferramenta para a formulação de políticas públicas. No setor público, algoritmos podem, por exemplo, identificar, por meio da coleta de dados eletrônicos, padrões de comportamento dos contribuintes na evasão de impostos, de pacientes de maior risco que exigem atendimento médico ou desgastes em obras de infraestrutura, como pontes e viadutos. A análise desses dados permitirá que os governos se tornem mais preditivos nas demandas da população e das cidades, em vez de agirem de modo reativo, como acontece hoje na maioria dos casos.

A tecnologia cria também um desconforto sobre até que ponto, afinal de contas, ela pode substituir o governo de carne e osso. Na Estônia está em teste um projeto de juiz-robô que julgará pequenas causas, envolvendo disputas de menos de 7 000 euros. O software do juiz-robô será alimentado com documentos legais e tomará decisões com base em algoritmos, eliminando assim o acúmulo de processos e liberando os magistrados para se dedicarem aos casos complexos. Com uma ressalva: qualquer cidadão que não concordar com a decisão tomada por um robô poderá recorrer a um juiz humano. “Não me sentiria confortável em saber que um processo meu foi julgado por um robô”, diz Bertrand, da consultoria EY. “Mas, na gestão pública, a tecnologia ajuda a tirar servidores de tarefas repetitivas para que possam prestar um serviço presencial de qualidade ao cidadão.”

Outra tecnologia que deve ganhar espaço nos governos é o blockchain. Mais conhecido por fornecer a infraestrutura para a criação de criptomoedas, como o bitcoin, o blockchain é como um banco de dados permanente de todas as movimentações dentro do sistema de governo. Seu uso atende à demanda crescente do setor público de garantir a segurança dos dados das pessoas e das empresas. Um exemplo: a Dinamarca será o primeiro país do mundo a aplicar esse tipo de tecnologia para registros de navios que passam por suas águas, algo ainda feito de maneira arcaica e pouco segura. O governo separou 5 milhões de euros para a criação desse sistema, que ajudará a melhorar o controle aduaneiro nos portos dinamarqueses.

No Brasil, o tema da digitalização também tem avançado, ainda que mais lentamente do que o desejável — o país ocupa a 44a posição no ranking da Organização das Nações Unidas de governo eletrônico, atrás do Uruguai e do Chile. Desde 2016, um grupo de 200 técnicos da área de tecnologia, hoje alocados na Secretaria de Governo Digital, vinculada ao Ministério da Economia, escrutinam órgãos que terão uma redução significativa de servidores. Só no governo federal estima-se que de 40% a 50% dos cerca de 1 milhão de funcionários deverão se aposentar nos próximos anos. Em tempos de ajuste fiscal, a perspectiva de reduzir o inchado Estado brasileiro é uma boa notícia, mas há o desafio de garantir que a administração pública não paralise, uma vez que o ministro da Economia, Paulo Guedes, já avisou que não pretende fazer novos concursos. “No futuro, para cada dez servidores que se aposentarem no Brasil, precisaremos contratar apenas um”, afirma Paulo Uebel, secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, ligado à pasta da Economia. Um dos órgãos mais afetados será o Instituto Nacional de Seguridade Social, que presta 72 serviços à população, da concessão de aposentadoria ao auxílio-doença. Dos 20 000 servidores do INSS, 34% já estão em condições de pedir a aposentadoria em 2019. O temor é que a reforma da Previdência, ao endurecer as regras para o funcionalismo, acelere esse processo, que já afeta a qualidade dos serviços. Juliana Souza e Maxsuéli Pontes, ambas de Joinville, em Santa Catarina, são duas das 276 000 mulheres no Brasil que aguardam a liberação do auxílio-maternidade a que têm direito. Juliana é mãe de Helena, de 8 meses, e Maxsuéli, de Chloe, de 5 meses. Elas se conheceram num grupo de Facebook de mulheres da cidade que vivem a mesma situação. Ambas estão desempregadas e esperavam que o benefício, no valor de um salário mínimo mensal por quatro meses, ajudasse nas despesas iniciais das crianças. “Entro no site ou ligo para a ouvidoria do INSS e todo dia é a mesma resposta: em análise”, diz Maxsuéli. Pela experiência de outras mães, a expectativa é receber o dinheiro somente depois que sua filha completar 1 ano.

Hoje, a União presta 2 973 serviços ao público, dos quais quase a metade está digitalizada. O problema é que eles pouco conversam entre si. Para enviar a declaração de imposto de renda, é preciso baixar um programa da Receita Federal. Para requerer a aposentadoria ou outro benefício, é necessário se cadastrar num site do INSS. Para pedir o passaporte, deve-se entrar no site da Polícia Federal. Para requisitar o seguro-desemprego, o caminho é preencher um formulário num site do Ministério do Trabalho. Para consultar as multas de trânsito, é necessário se cadastrar no site do Detran. E assim por diante. E, para interagir com cada um desses órgãos, o cidadão precisa preencher uma série de dados e provar que é quem diz ser.

Com as ferramentas tecnológicas disponíveis, dá para melhorar esse panorama. No ano passado, o Ministério da Defesa passou a oferecer o alistamento militar pela internet a cerca de 1,7 milhão de jovens de 18 anos — 47% o fizeram online. Antes do processo de digitalização, 2 307 servidores estavam envolvidos no alistamento. Com a ferramenta online, foi possível cortar o número para 829. Estima-se que a redução traga uma economia anual de 181 milhões de reais para a administração. O plano do governo federal é ter outros 1 000 serviços digitalizados até 2020 — e gerar uma economia estimada em 3 bilhões de reais aos cofres públicos.

A magnitude dos ganhos econômicos com a digitalização dos serviços públicos varia conforme o país, mas costuma ser expressiva. Na Austrália, que ocupa a segunda posição no ranking das Nações Unidas de governo eletrônico, estima-se que cada transação entre Estado e cidadão que exija atendimento presencial custe 17 dólares australianos (47 reais). Se realizada online, o custo cairia para 40 centavos (1,30 real). Em 2016, o governo australiano criou a Agência de Transformação Digital para liderar a digitalização do setor público. A meta é possibilitar que os cidadãos tenham acesso a todos os serviços do governo digitalmente até 2025. Projetos de “governo sem papel” também estão no horizonte de alguns estados brasileiros, como São Paulo. A secretária paulista de Desenvolvimento Econômico, Patrícia Ellen da Silva, ex-sócia da consultoria McKinsey para a área de setor público, ainda se surpreende com os carrinhos que passam pelos corredores dos órgãos de governo abarrotados de papel e processos. “Tudo demora muito. Os trâmites são lentos, pois há uma quantidade imensa de regras e legislações que o setor público tem de seguir”, diz Patrícia. Uma das causas de dor de cabeça dos gestores é a necessidade de armazenar tudo em papel durante cinco, dez ou até 20 anos, dependendo do caso. Só a Junta Comercial de São Paulo tem 64 000 caixas armazenadas em depósitos e gasta anualmente 840 000 reais com o contrato de guarda da papelada. Há uma perspectiva de que isso possa melhorar. Em abril, o governo federal publicou a Medida Provisória da Liberdade Econômica, que, entre outras coisas, prevê regras para digitalização e microfilmagem de documentos, eliminando a exigência de mantê-los em papel. Falta regulamentar a norma.

Engajamento do cidadão

Uma das barreiras para a transformação digital do setor público é que ela é muito mais lenta do que os próprios governos gostariam que fosse. O Reino Unido, outro dos países na linha de frente do governo eletrônico no mundo, tem enfrentado dificuldades nessa seara. Enquanto o Serviço Digital do Reino Unido (GDS, na sigla em inglês) corre contra o tempo com uma força-tarefa de desenvolvedores empenhados na criação de soluções online para tornar viável o Brexit — a saída do país da União Europeia —, o programa de identidade digital britânico não tem conseguido engajar a população em uma série de serviços.

Lançado em 2013, o programa exige que o cidadão se inscreva numa plataforma de verificação para poder acessar de forma segura 19 serviços online do governo, como a restituição do imposto de renda e linhas de crédito estatal. A meta do GDS é chegar 25 milhões de pessoas inscritas até 2020. Até fevereiro deste ano, porém, apenas 3,6 milhões de pessoas tinham aderido ao programa. Os ganhos estimados com o projeto, inicialmente de 1 bilhão de dólares no período de 2016 a 2020, foram recalculados para 217 milhões de dólares. “O engajamento do público é proporcional à dependência da população em relação ao Estado”, diz Sahil Kini, da Aspada Investment, empresa de capital de risco indiana focada em empreendedores que desenvolvem soluções para o setor público.

Kini participou como consultor no projeto de identidade digital de seu país, batizado de Aadhaar (“alicerce”, na tradução da língua hindi). Cerca de 1,2 bilhão de indianos, ou 99% da população adulta, já foram cadastrados no sistema de identificação baseado em informações biométricas, como impressão digital e íris dos olhos. O programa, lançado em 2009, ganhou impulso nos últimos anos e tornou-se uma das principais bandeiras do governo do primeiro-ministro Narendra Modi. As informações biométricas são vinculadas a um número pessoal de Aadhaar, de 12 dígitos.

O objetivo inicial da criação de uma identidade digital era combater as fraudes num programa de distribuição subsidiada de alimentos à população de baixa renda. Era uma forma também de promover a inclusão social, uma vez que milhões de indianos, especialmente na zona rural, não tinham nem mesmo um documento de identidade e, assim, estavam excluídos dos programas assistenciais. Mas logo a identidade digital passou a ser exigida em várias situações da vida privada dos indianos — tornou-se impossível, por exemplo, abrir uma conta bancária ou comprar um telefone celular sem apresentar o número de Aadhaar.

Alguns críticos dizem que isso representa uma ameaça à privacidade. Em tese, o Estado indiano conseguiria rastrear todas as transações financeiras e interações sociais de cada cidadão, numa versão moderna do Big Brother descrito pelo escritor inglês George Orwell no romance 1984. Em setembro do ano passado, depois de muito debate, a Suprema Corte indiana decidiu que as empresas privadas não podem mais exigir que as pessoas forneçam seu número de Aadhaar para ter acesso a produtos ou serviços. Ao mesmo tempo, o órgão máximo do Judiciário indiano ratificou a legalidade do Aadhaar como um todo, ou seja, o sistema de identidade digital pode continuar a operar. “O Aadhaar dá dignidade às pessoas marginalizadas”, afirmou a Suprema Corte. “E dignidade é algo que deve prevalecer sobre a privacidade.”

É uma discussão complexa. Por um lado, todos nós temos direito à privacidade, um conceito no centro do debate desde que a internet entrou em nossa vida. Por outro, acontece de o discurso da privacidade ser usado como desculpa para resistências de políticos e servidores públicos em relação ao escrutínio da administração pública com o avanço da digitalização. Da grande corrupção aos pequenos delitos do dia a dia, sem o auxílio das ferramentas digitais é quase impossível pegar quem está burlando a máquina estatal. Em Recife, a controladoria da prefeitura planejava uma auditoria da folha de pagamentos dos cerca de 37.000 servidores. A ideia era destacar cinco funcionários para fazer uma pesquisa por amostragem, trabalho que deveria consumir aproximadamente seis meses.

Em 2017, foi aberta uma licitação para a prestação do serviço digitalmente. A empresa escolhida foi a startup pernambucana Fábrica de Negócio. Ela implantou um software cujo algoritmo cruza as 25 regras da controladoria com os mais de 9.000 itens que estão na folha de pagamentos da prefeitura de Recife. A varredura foi feita em todos os holerites — em míseros 45 segundos. Verificou-se todo tipo de irregularidade: servidores que recebiam benefícios indevidos, horas extras para quem estava de licença médica, e por aí vai. Em menos de um ano, foram economizados 10 milhões de reais. “Agora, todos os meses, a prefeitura faz esse pente-fino antes de mandar os salários ao banco”, afirma Hamilton Alves Pessoa, fundador da startup.

Se há uma revolução tecnológica em curso, as startups estão dando sua contribuição. No Brasil, estima-se que haja cerca de 600 startups dedicadas ao universo de “govtech”, o ecossistema de empreendedores que oferecem soluções tecnológicas ao setor público. Boa parte mira as oportunidades em âmbito regional. “Num cenário de estados e prefeituras quebrados, muitos políticos estão interessados nas startups porque colocam uma camada de inovação e eficiência na administração e também economizam dinheiro”, diz Letícia Piccolotto, fundadora do BrazilLAB, programa de aceleração que conecta empreendedores com o poder público.

Na região metropolitana de São Paulo, a cidade de Santo André acaba de adotar a plataforma da startup Colab, espécie de rede social de zeladoria urbana para compartilhar os problemas locais, já adotada em 100 municípios brasileiros. Em Santo André, além de captar as reclamações dos moradores, a plataforma do Colab gerencia o fluxo interno das demandas na prefeitura. Se foi reportada a queda de uma árvore, a plataforma identifica o passo a passo e quem na prefeitura está envolvido na resolução do problema. “A plataforma ajuda o exercício da cidadania”, diz Gustavo Maia, fundador do Colab. “Se o cidadão vê que o município responde rapidamente aos problemas que reporta, ele vai se sentir cada vez mais motivado a participar do debate público. Isso fortalece a democracia.”

Desde o começo do ano, foram relatados pela ferramenta em Santo André 10.400 casos de zeladoria urbana. Cerca de 50% foram resolvidos. Antes havia uma fila de 20.000 pedidos sem solução. “Não faltam ferramentas para tornar o serviço público mais eficiente e mais transparente”, diz Pedro Seno, secretário de Planejamento de Santo André.

Governos parados no tempo se distanciam dos cidadãos e das empresas, que vivem a frenética era de inovações disruptivas. “As horas que o setor público rouba dos empreendedores nunca vão se transformar em riqueza”, diz Linnar Viik, cientista de tecnologia da informação e diretor da e-Governance Academy, um instituto sem fins lucrativos da Estônia que estuda os impactos econômicos da digitalização. A transformação digital é uma oportunidade para governos que já desperdiçaram muito tempo e dinheiro com a burocracia. No Brasil, não agarrar essa chance é adiar mais uma vez a possibilidade de melhorar a vida dos cidadãos.

UM GOVERNO QUASE INVISÍVEL

A Estônia já tem uma das mais avançadas máquinas públicas do mundo. Mas o trabalho não acaba nunca | Fabiane Stefano, de Talim

Não faz muito tempo, diretores de tecnologia da informação, os chamados CIOs (chief information officer, em inglês), eram cargos que existiam quase exclusivamente na iniciativa privada. A transformação digital dos governos levou a posição para o setor público. Siim Sikkut, que ocupa atualmente o cargo no governo da Estônia, diz que, depois de o país avançar nos serviços digitais, o foco é tornar a máquina estatal quase invisível.

Como um governo digital se torna um governo melhor?

Com eficiência e transparência. A interação com o governo deve ser a mais simples possível para que o cidadão possa utilizar seu tempo em atividades reais de qualidade — como ficar com a família em vez de esperar na fila do departamento de trânsito. Nosso objetivo é ter um governo que seja quase invisível na vida do cidadão.

Como a Estônia aplica o que economiza com a digitalização?

O governo digital economiza aproximadamente 2% do produto interno bruto. Essa economia nos permite, por exemplo, conceder licença parental de 18 meses e oferecer saúde gratuita. É este o objetivo: tirar da burocracia e gastar mais com as políticas públicas.

Como tecnologias como inteligência artificial e blockchain estão mudando o governo de seu país?

Somos um pequeno país, com população envelhecida, e precisamos de toda otimização possível. A inteligência artificial pode tornar o setor público ainda mais eficiente. Já percebemos que o uso da inteligência artificial no governo, por exemplo, incentiva a introdução de novas tecnologias no setor privado. Quanto ao blockchain, é bom lembrar que é uma excelente ferramenta para reforçar a integridade de dados e sistemas de informação. Mas não é uma panaceia e tem aplicação bem específica.

Em 2007, a Estônia foi alvo de um grande ataque de hackers. Governos digitais não ficam mais vulneráveis?

Ataques cibernéticos a governos eletrônicos são comuns e podem vir de qualquer lugar. Todos estão, potencialmente, mais vulneráveis quando conectados à internet. Na Estônia, priorizamos a segurança cibernética tanto quanto a criação de serviços digitais. Mas a verdade é que a segurança absoluta é impossível e temos de aprender a ser resilientes. “ESTAMOS 15 ANOS ATRASADOS”

“ESTAMOS 15 ANOS ATRASADOS”

Responsável por acelerar a transformação digital no governo, Paulo Uebel diz que no futuro o Estado poderá dar celulares para a população se conectar aos serviços públicos

Antes de assumir o posto de secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital no Ministério da Economia, Paulo Uebel já tinha sido presidente de uma multinacional de espaços de coworking no Brasil e de um fundo de capital de risco — além de ter passado um ano e oito meses na prefeitura de São Paulo na pasta de Gestão da administração de João Doria. Logo, a intersecção entre tecnologia e gestão já é tema recorrente para o advogado e administrador gaúcho. No governo federal, está à frente da agenda de digitalização, cuja meta é transformar 1 000 serviços públicos analógicos em digitais.

O governo federal tem 1 milhão de funcionários e, ao mesmo tempo, a percepção da qualidade do serviço público é ruim. Como a digitalização do governo vai resolver essa discrepância?

A transformação digital é uma solução, pois melhora a qualidade dos serviços com menos pessoas. Hoje, o Instituto Nacional de Seguridade Social, por exemplo, faz 200 000 atendimentos em suas agências diariamente. Cada um deles passa pela análise de, pelo menos, um funcionário. Com as informações que o próprio INSS já tem, seria possível, por meio de ferramentas analíticas, conceder benefícios automaticamente, sem a necessidade de as pessoas irem até lá.

A digitalização vai diminuir o número de pessoas no governo?

Sim, não haverá a necessidade de repor cada servidor que vai se aposentar. No futuro, talvez seja preciso um novo funcionário para cada dez aposentados. Com as ferramentas de inteligência artificial, o computador vai fazer o trabalho de milhares de servidores. Será melhor para o cidadão e custará menos para a sociedade.

O Brasil está muito atrasado nesse processo?

A população brasileira é a quarta maior em inclusão na internet, mas o país aparece na 44a posição do ranking de digitalização de 193 países das Nações Unidas. O governo só criou uma estratégia de digitalização no final de 2016. A Dinamarca fez isso em 2001. Temos um atraso de 15 anos. Por isso, é preciso acelerar para recuperar o tempo perdido. E a população vai pressionar. Entre os jovens de 13 a 24 anos, 87% acessam a internet com frequência, independentemente da região e da classe social. Daqui a três anos, essa turma estará consumindo mais serviços públicos, sobretudo por causa do mercado de trabalho. Eles não vão tolerar um governo analógico.

Mas há no país uma quantidade enorme de analfabetos digitais…

No momento em que você tira as pessoas que têm acesso à internet das repartições públicas, as que não têm vão ter um atendimento mais rápido e de maior qualidade. Isso aconteceu na rede bancária. Muita gente resolve a vida pelo celular e demanda menos da agência. Vai ao banco pessoalmente quem de fato precisa. No futuro, talvez faça mais sentido para o governo dar a cada pessoa um celular com capacidade para acessar serviços públicos do que abrir uma repartição pública.

Isso vai acontecer no curto prazo?

Não nos próximos dois anos. Mas é um cenário com o qual a gente trabalha. Se o cidadão está numa região remota, em vez de abrir uma agência do INSS ou outra repartição pública, às vezes, sai mais barato dar um celular com acesso à internet, pago pelo governo, do que investir numa unidade física.

Um governo mais digital combate melhor a corrupção?

Quanto maior o tamanho do Estado, quanto mais áreas sobre as quais exerce poder, maiores as oportunidades de corrupção. Atacar o tamanho do Estado é essencial. Além disso, criar mecanismos que deem maior transparência e rastreabilidade e evitem decisões arbitrárias. Com a Medida Provisória da Liberdade Econômica, assinada em abril, criamos a isonomia das decisões administrativas. Dois cidadãos numa situação similar têm de receber o mesmo tratamento do governo. Não podemos tratar uma pessoa de um jeito e outra de outro. Isso dá margem a corrupção. O governo tem de ser eficiente e impessoal.

ELAS QUEREM MUDAR O SETOR PÚBLICO

Uma geração de startups que desenvolvem tecnologias para melhorar os governos está proliferando no Brasil. Conheça algumas.

Auditoria em holerites

O pernambucano Hamilton Alves Pessoa trabalhou 12 anos como executivo da área de governo das empresas de tecnologia IBM e Totvs. Ao perceber que havia espaço para ser ocupado no setor, decidiu fundar, em 2015, a Fábrica de Negócio, que faz auditoria na folha de pagamentos de órgãos públicos. O algoritmo criado pela empresa cruza regras de controladoria do serviço público com as informações dos holerites dos servidores. Já foi adotado pelo governo do Amapá e pela prefeitura de Recife, onde a identificação de irregularidades gerou uma economia de 10 milhões de reais em um ano. A empresa acabou de passar por uma temporada na aceleradora de startups BraziLAB, de São Paulo, que conecta empreendedores com o setor público, e está em negociação com 15 prefeituras país afora.

Pente-fino nos gastos

O consultor carioca Alexandre Simões Estrela ficava intrigado que as prefeituras não aprendiam com as boas práticas de outros municípios. Viu aí uma oportunidade de negócio. Junto com outros três sócios, ele fundou a Mais Municípios (foto da operação acima), uma plataforma que permite a identificação e a comparação das melhores práticas na gestão pública. O algoritmo confronta as despesas de combustível de diferentes departamentos ou o consumo de merenda da rede escolar de uma mesma prefeitura. É possível comparar também o padrão de gastos em cidades de porte semelhante. Com 80 prefeituras utilizando a plataforma, já foi possível acumular uma economia de 500 milhões de reais em dois anos para o setor público.

Certificação digital

O paulista Edilson Osório Júnior transferiu há pouco mais de um ano sua startup, a OriginalMy, de São Paulo para Talim, na Estônia, a fim de abrir mercados para a empresa. Osório Júnior criou uma certificação de documentos e validação de identidade com o uso da tecnologia blockchain, que cria uma espécie de registro público descentralizado e seguro. Desenvolvido em 2015, o registro da OriginalMy tem sido alvo da ira dos cartórios brasileiros, que enxergam um concorrente adentrando seus domínios. Os desenvolvedores da empresa continuam no Brasil. Enquanto isso, instalado num coworking onde antes havia uma fábrica de eletrônicos na era soviética, Osório Júnior tenta levantar 1,5 milhão de dólares para investir na expansão do negócio e busca parceiros europeus para sua tecnologia.

Hora do remédio

A Cuco Health, da catarinense Lívia Cunha, criou um aplicativo que ajuda na administração de medicamentos. Funciona assim: o paciente baixa o app no celular, insere a rotina de remédios e é avisado quando tomá-los. Com contratos com as farmacêuticas Sanofi, Roche e GSK, o próximo passo é levar o produto para as prefeituras. Para entender o setor público, a Cuco fez parceria com o Hospital do Coração, de São Paulo, no tratamento de crianças cardiopatas. Muitas tomavam os remédios pós-cirurgia de forma incorreta, aumentando os casos de reinternação. Com o app no telefone dos pais, a adesão ao tratamento cresceu de 40% para 79%. “Descobrimos que na rede pública o aplicativo não pode consumir o plano de dados do celular do paciente, senão ele não usa”, diz Lívia.

Por Fabiane Stefano, de Talim, André Jankavski, de Copenhague e Ernesto Yoshida

Publicado em: 23/05/2019 às 05h49 Alterado em: 27/06/2019 às 15h48